O monstro do controle esfincteriano e a prática da Higiene Natural
Quando pensamos em praticar Higiene Natural e buscamos informações a respeito, seguidamente encontramos na internet postagens que afirmam ser a HN uma prática prejudicial "ao esfíncter anal do bebê" sob a alegação de "imaturidade esfincteriana". Primeiramente, saibamos, não dizemos "esfíncter anal" e sim "esfíncteres anais"! Então, a própria crítica já vem revestida de erro de semântica pois, no corpo todo temos mais de 26 esfíncteres e até nano esfíncteres enquanto que, apenas no ânus, temos dois esfíncteres: o esfíncter anal interno que não tem controle voluntário e é composto de músculo liso organizado de maneira circular e o esfíncter anal externo que tem controle voluntário e é composto de músculo estriado que está envolvendo o esfíncter interno e se estendendo para além dele. São os músculos do assoalho pélvico que suportam ambos os esfíncteres que permanecem restritos o tempo todo.
Os esfíncteres são feixes de fibras musculares de proteção do corpo, a exemplo do esfíncter esofágico superior que evita que os líquidos e alimentos retornem para a boca e do esfíncter esofágico inferior que evita que retorne suco gástrico ou partículas alimentares ao esôfago, os esfíncteres anais e os uretrais evitam que o corpo humano se comporte como um "barril furado" a expelir fezes e urina sem critério. Nesse sentido, no meu terceiro livro "Os Segredos do Xixi Diurno e Noturno" é possível conferir as informações sobre os esfíncteres uretrais e sua relação com o cérebro do bebê e a urina. Aqui vamos nos atentar aos esfíncteres anais do bebê e a essa crítica sem sentido de que, ao praticar higiene natural, a família estaria correndo o risco de prejudicá-los.
Pensemos juntos: Quando o bolo alimentar passa pelo processo de deglutição, digestão/processamento, separação, aglutinação e se torna finalmente um bolo fecal, ao chegar no reto, de maneira natural e involuntariamente o esfíncter anal interno (aquele que reveste as paredes do reto - vide imagem acima) relaxa, fazendo com que o esfíncter anal externo (vinculado à região externa do ânus) seja responsável por "segurar" as fezes, evitando que o corpo humano seja um eliminador não padronizado. São esses dois esfíncteres anais com seu aparato nervoso que asseguram que as fezes não "desmaiem" de maneira contínua. Durante todo esse processo, os órgãos envolvidos conversam com o cérebro, músculos e nervos, através da corrente sanguínea, por neurônios, neurotransmissores, hormônios e canais diretos de informação como, por exemplo, o "centro de defecação" situado no bulbo cerebral e que é estimulado pelo contato/passagem das próprias fezes pelo canal anal potencializando assim o reflexo de eliminação, ou seja, trata-se de uma tecnologia corporal, um reflexo táctil do ânus. Por essa razão a lubrificação anal através de um algodão úmido com água ou óleo vegetal vai auxiliar no aprendizado sobre o controle e a coordenação do esfíncter anal externo que se responsabiliza pela conclusão da defecação.
Sim, e o que isso quer dizer? Que os reflexos e o centro de defecação podem ser estimulados também por drogas/medicamentos, substâncias químicas, toxinas e até odores, favorecendo a efetivação do procedimento. Sabe aquela sua cagadinha marota que acontece fielmente depois do seu cafézinho? Ou aquele vídeo fofo do bebê soltando uns punzinhos depois de sentir o cheiro do pó do café? E aquela nossa necessidade de fazer cocô depois de comer alguma coisa que não sentou bem? Aham! é disso que estamos falando aqui!
Assim podemos dizer que a defecação ocorre em duas etapas. Na primeira, o processo é involuntário e acontece por causa dos reflexos de defecação que podem ter sido estimulados por diversos motivos como falamos acima mas, geralmente acontecem em razão do conteúdo contido no cólon (que é a parte central do intestino grosso e se divide em 4 partes = ascendente, transverso, descendente e sigmóide). Quando as fezes vão sendo direcionadas para o reto através de movimentos peristálticos ativados pelo reflexo de defecação que aumentam a atividade do cólon, o esfíncter anal interno relaxa e são esses acontecimentos que resultam no desejo de defecar, é por isso que os sinais de eliminação acontecem antes da eliminação em si.
Na segunda etapa, será necessário o relaxamento do esfíncter anal externo que tem seu controle estabelecido por fibras nervosas do nervo pudendo que, por sua vez, faz parte do sistema nervoso somático. Ou seja, "não é automático" como na primeira etapa e está submetido ao controle voluntário da mente consciente, o que não significa que não esteja submetido também à mente subconsciente, explicando as possíveis diarreias ou constipações relacionadas às questões emocionais como no caso do medo, estresse, raiva, ansiedade e depressão, por exemplo. São comandos que vêm do cérebro através de nervos autonômicos e da medula espinhal até o cólon, afinal, é o cérebro quem dá o comando final, pois ele que é capaz de discriminar entre gases e fezes e tomar a decisão de liberar o esfíncter anal externo quando apropriado.
É com o uso consciente do esfíncter anal externo que o processo de defecação se dá por completo.
E os reflexos de defecação não atuam somente no trato gastrointestinal, mas também na respiração que se aprofunda, nos batimentos cardíacos que se aceleram e no fechamento da glote. Perceba que no momento da defecação o corpo segura a respiração enquanto contrai os músculos abdominais ao mesmo tempo em que os músculos do assoalho pélvico vão relaxando e reduzindo a pressão anal favorecendo a saída das fezes. Essa é a famosa "Manobra de Valsava" e a posição ideal para sua aplicação é em cócoras.
A elminação mais eficaz é aquela que ocorre naturalmente, porém, os reflexos de defecação também podem ser estimulados com a respiração profunda empurrando o diafragma e contraindo os músculos da parede abdominal, aumentando a pressão interna, entretanto, essa estimulação requer esforço e não apresenta tanta eficácia. Ao mesmo tempo, ignorar constantemente os reflexos naturais de defecação ou não agir em prol deles, diminui a comunicação interna provocando constipação e consequente dor ao eliminar que gera mais constipação e assim sucessivamente. É basicamente esse um dos principais desserviços das fraldas.
Pesquisadores chineses, neozelandeses, israelenses, franceses e de diversos lugares do mundo vêm se dedicando ao estudo da Higiene Natural ou Comunicação de Eliminação e atestando que a introdução precoce da técnica diminui a incidência de disfunções vesico-intestinais nas crianças. (Comunicação de eliminação tardia sobre a prevalência de disfunção vesical e intestinal em crianças. Sci Rep. 2021) . Ao mesmo tempo em que nos ensinam que "O uso excessivo de fraldas descartáveis está associado à enurese primária em crianças" .
Quer dizer, ao contrário do que muita gente diz, é o uso de fraldas e, especialmente, o uso prolongado que gera disfunções e riscos aos nossos bebês e a prática da comunicação serve como prevenção de inúmeros problemas físicos (também já existem estudos sobre os fatores psicológicos também).
Entendendo o procedimento natural de eliminação das fezes, torna-se mais fácil realizar seu atendimento e, consequentemente, o bebê passa a aprender o processo de relaxar o esfíncter anal externo, tornando-se hábil de forma precoce, prevenindo diversos riscos de disfunções e disturbios intestinais de curto, médio e longo prazo.
Existem outros reflexos que influenciam na defecação, como o Reflexo Gastrocólico que significa a estimulação de movimentos peristálticos no cólon em razão da distenção estomacal com a chegada da refeição ou logo após, o Reflexo Gastro-ileal que se dá pelo mesmo motivo, porém, proporciona os movimentos peristálticos no íleo que é a parte final do intestino fino ou delgado, quando o esfíncter ileocecal relaxa liberando o espaço no íleo e "empurrando" o conteúdo fecal para o cólon. Já o Reflexo Enterogástrico reduz o peristaltismo inibindo a motilidade gástrica no estômago, afim de que o intestino delgado, na presença de quimo ácido, possa trabalhar com mais tempo. E, por fim, o Reflexo Duodenocolic que se representa por uma distensão ocorrida no duodeno pouco depois de uma refeição desencadeando movimentos em massa do cólon. E, ainda, o Reflexo Peritoneointestinal que envolve o peritônio e os intestinos.
E o mesmo vale para o xixi, que merece total atenção já que é indissociável do cocô e envolve os mesmos procedimentos e comandos corpais, entretanto, focado nos rins, bexiga e esfíncteres uretrais. E também tem reflexos envolvidos que interferem no intestino, como o Reflexo Renointestinal que envolve os rins e o intestino e o Reflexo Vesicointestinal que envolve os intestinos e a bexiga, são reflexos desencadeados pela irritação desses órgãos e que inibem as atividades intestinais.
Bom, de uma forma panorâmica é possível compreender que a defecação e a ativação dos esfincteres anais são processos naturais que requerem, sendo os esfíncteres anais pequenos músculos protetivos, o seu uso consciente, por isso, quanto mais cedo o mini humano for apresentado ao conhecimento do seu corpo, mais precocemente será capaz de dominar suas especificações e funcionalidades o que torna o bebê mais ativo no processo de eliminação de suas próprias fezes.
Fernanda Paz, Bebê sem Fralda Brasil
Especialista em Higiene Natural e Desfralde, pós graduada em Neuropsicologia, Saúde Pública e Saúde da Família.
Estudos citados:
Xu PC, Wang YH, Meng QJ, Wen YB, Yang J, Wang XZ, Chen Y, Ele YL, Wang QW, Wang Y, Cui LG, Sihoe JD, Franco I, Lang JH, Wen JG. Comunicação de eliminação tardia sobre a prevalência de disfunção vesical e intestinal em crianças. Sci Rep. 2021 11 jun; 11(1):12366. DOI: 10.1038/s41598-021-91704-3. PMID: 34117301; PMCID: PMC8196082.
Li X, Wen JG, Shen T, Yang XQ, Peng SX, Wang XZ, Xie H, Wu XD, Du YK. O uso excessivo de fraldas descartáveis está associado à enurese primária em crianças. Sci Rep. 2020 1º de setembro; 10(1):14407. DOI: 10.1038/s41598-020-70195-8. PMID: 32873840; PMCID: PMC7462848.